sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Carta ao louco

"Vejo que tem melhorado. É realmente ótimo vê-lo em estado tão bom, com tanto brilho nos olhos. Fico imensamente feliz que esteja deixando os vícios, que consiga pouco a pouco se livrar dessas substâncias. Vê-lo sair desse cubículo abafado é imensamente gratificante, pois sei que o tratamento tem sido efetivo. Você sabe, eu tenho o estudado por muito tempo. Durante algum tempo, antes de atendê-lo, eu o observei, você sempre foi aquele que mais me chamou a atenção. Entre todos, você parecia o mais inquieto, o mais impetuoso. Seus impulsos, suas vontades, seus instintos... Como poderia eu sequer entender o que você estava fazendo ali? Santo Deus, o que fizeram!? Os outros nem sequer podem ser comparados a você -e no entanto, ali você estava, no meio deles. Era completamente inadequado. Mesmo em meio a tantos corpos cinzentos, moribundos, sem vida, você sempre esteve radiante. E como poderia eu ignorá-lo? Eu já não atendia mais casos particulares. Já não era de meu feitio atender um a um, escutando pacientemente, refletindo sobre tudo, aquilo me deixava exausto. Eles nunca me escutavam, de qualquer maneira. Eram como rebeldes que simplesmente entravam em meu consultório para tirar as coisas de lugar, danificar meus pertences e me deixar com uma grande dor de cabeça no final do dia. Acho que no fundo, eu que nunca soube lidar com isso. Então, eu só ficava ali, observando de longe, pronto para dar assistência quando a primeira emergência surgisse. Mas você, era inexplicavelmente fascinante como meus olhos nunca poderiam sair de sua direção. Eu já nem mesmo cumpria minha função direito. Pedi que lhe trouxessem até mim, então. Eu já tinha observado o suficiente. E era esplêndido, de fato, incrível como você se expressava com tamanho brilhantismo. Seus olhos resplandeciam como estrelas cadentes, a voar aqui e ali. Suas palavras eram como nuvens voláteis em uma ventania repentina. Sua mente, sua alma e seu coração transpareciam através das suas ideias. Tem sido deveras deleitoso assistir você. Pela primeira vez, não me sinto ameaçado em meu próprio consultório, esperando o primeiro surto a qualquer momento, onde eventualmente eu sairia com minha integridade física ameaçada. Pelo contrário, sinto como se atender você refrescasse os dias quentes de um verão, ou aquecessem uma ventania cortante no inverno.  Os chás são sempre mais saborosos e menos amargos em sua companhia. Você é brilhante, porque a sua loucura é diferente. Não -você não é simplesmente louco. O seu diagnóstico, ouso dizer que é preciso e certeiro: você é livre. Livre dos medos, das amarras, do que pensam os outros. Você voa, mergulha, corre e dança como bem quer, com sua própria música, no seu próprio tempo. Como puderam eles te prender? Sinto muito que houve tanta negligência anteriormente, mas, meu caro paciente, o seu tratamento deve ser um só: a liberdade. Sim, a liberdade, pois não é o veneno da cobra também a base do antídoto? Esse mundo é completamente seu, e você não merece menos. Mas antes, meu caro, eu tenho algo também a lhe acrescentar. Ao lhe observar, tenho percebido também que, como você mesmo havia pontuado, todos temos, leve ou gravemente, certo grau de loucura. Você conferiu a mim uma liberdade que nunca antes eu pude sequer saber da existência. Me apresentou a impressões que jamais eu sequer pude sonhar ter. Mas, meu caro, sendo a liberdade um diagnóstico, temo que não se descobriu ainda a cura. O tratamento há de ser diário, e a alta nunca vai acontecer. Pois bem, o questiono... Esse consultório de nada mais me serve se sou tão louco quanto a quem atendo, e, assim sendo, se importaria de somar sua liberdade com a minha -melhor dizendo- se importaria de dividirmos nossas loucuras e todos os dias ser livre junto a mim?
Sinceramente,
o Doutor."

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